O universo não é meu: sou eu. | Texto de Fernando Pessoa

O universo não é meu: sou eu.
Por Fernando Pessoa*

A renúncia é a libertação. Não querer é poder.

Que me pode dar a China que a minha a minha alma não me tenha dado? E, se minha alma não pode dar, como dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei buscar riquezas ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.

Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.

No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só – o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda experiência humana –  o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios – todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulantes extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo… Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Essas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.

Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.

*Fernando Pessoa em O livro do desassossego p. 144 – 145


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