Que é uma mulher? | Por Simone de Beauvoir

Que é uma mulher?

Por Simone de Beauvoir*

Hesitei muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres. E não é novo. A querela do feminismo deu muito que falar. Agora está mais ou menos encerrada. Não toquemos mais nisso… No entanto, ainda se fala dela. E não parece que as volumosas tolices que se disseram neste último século tenham realmente esclarecido a questão. Demais, haverá realmente um problema? Em que consiste? Em verdade, haverá mulher? (…)

“Onde estão as mulheres?” (…) Antes de mais nada: que é uma mulher? (…) Falando de certas mulheres, os conhecedores declaram: “Não são mulheres”, embora tenham um útero como as outras… Todo mundo concorda em que há fêmeas na espécie humana; constituem, hoje, como outrora, mais ou menos a metade da humanidade; e contudo dizem-nos que a feminilidade “corre perigo”; e exortam-nos: “Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornem-se mulheres”.  Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. (…)

Se a função da fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusarmos também a explicá-la pelo “eterno feminino” e se, no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente, que há mulheres na terra, teremos que reformular a pergunta: que é uma mulher? (…)

Uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, tenha sido traduzida por um conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor a sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres deveriam ter sido vitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tido solução. Por que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa mudança? Trará ou não a partilha igual do mundo entre homens e mulheres?

Essas questões estão longe  de ser novas; já lhes foram dadas numerosas respostas, mas o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas pelo interesse. (…)

Se quisermos ver com clareza devemos sair desses trilhos; precisamos recusar as noções vagas de superioridade, inferioridade, igualdade que desvirtuam todas as discussões e reiniciar do começo.

Como poremos então a questão? E, antes de mais nada, quem somos nós para apresentá-las? Os homens são parte e juiz; as mulheres também. Onde encontrar um anjo? (…)

É sem dívida impossível tratar qualquer problema humano sem preconceito: a própria maneira de pôr as questões, as perspectivas adotadas pressupõem uma hierarquia de interesses: toda qualidade envolve valores. Não há descrição, dita objetiva, que não se erga sobre um fundo ético. Ao invés de tentar dissimular os princípios que se submetem mais ou menos explicitamente, cumpre examiná-los. (…)

A perspectiva que adotamos é a moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência “em si”, da realidade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é inflingida, assume o aspecto de frustração ou opressão. Em ambos os casos, um mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa em justificar a existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro.

O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? que caminho lhe são abertos? Quais conduzem a um beco sem saída? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela superar? São essas algumas questões fundamentais que desejaríamos elucidar…


*Texto adaptado, retirado de BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: Fatos e mitos, 4º ed. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo, SP: Difusão Européia do Livro, 1970. pg 7 – 23

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